domingo, 5 de janeiro de 2014

A lei Gabriela Leite



Sobre a Lei Gabriela Leite

Houve uma polêmica entre o Coletivo de Mulheres da CUT e o Deputado Federal Jean Willys (PSOL) devido à lei Gabriela Leite, de autoria do último, com fortes críticas e até mesmo acusações de ambas as partes. O projeto de lei do Deputado prevê a regulamentação da prostituição e não somente de forma autônoma, mas como funcionária de uma casa de prostituição, tendo parte de seu faturamento retida pelo empregador.
            Da parte das mulheres do coletivo o projeto recebeu críticas que referenda uma sociedade machista, patriarcal e capitalista, que serviria a interesses econômicos de interessados em explorar a prostituição na Copa  do Mundo. Jean Willys, por sua vez, rebateu as críticas das mulheres da CUT de moralistas e interessadas em enfraquecer politicamente um parlamentar do PT.  Para além desses ataques, cada uma das posições tem pontos extremamente pertinentes, que vou procurar explorar:

            Liberdade individual: Até onde?

"É curioso que as mulheres da CUT, por um moralismo não assumido, atentem contra as liberdades individuais e contra o direito de uma mulher de dispor sobre seu corpo, colocando-se ao lado do discurso dos fundamentalistas que impulsionam projetos para criminalizar o trabalho sexual,"

            Aqui Jean Willys toca num ponto primordial, o das liberdades individuais, ainda que simplificando o argumento de seu opositor ao moralismo. É fato que apesar de as mulheres serem duplamente vítimas do patriarcado e do capitalismo, elas (e eles) tem o direito de dispor sobre seus próprios corpos, e tomarem a decisão de prostituir-se por quaisquer motivos materiais e simbólicos. Há na sociedade atual o ideal liberal que os indivíduos tem esse direito, o de dispor sobre seus corpos, ideal que é propalado exaustivamente (mas não somente) pelos defensores do capitalismo. Contudo, também há um consenso  entre muitos de nós (principalmente à esquerda) de que o estado deve intermediar as relações entre indivíduos e grupos empresariais para evitar situações de exploração e dominação. Afinal de contas, por quê não se permite que se trabalhe 10, 11 horas por dia se o indivíduo assim o deseja?
             Para mim, a questão é que consentimento informado dos agentes numa dada relação social não é condição suficiente para não haver uma relação de dominação. Há uma assimetria muito grande entre os detentores do capital e empregados, então ainda que sua relação não seja uma dominação legal-formal, como servo e amo, ela se apóia numa constelação de interesses e condições materiais, e a medida que afunda na consciência dos agentes (inclusive dos empregados) e legitima tais relações assimétricas, torna-se uma dominação simbólica. Um exemplo histórico marcante é o período de desregulamentação econômica e apogeu liberal nos Estados Unidos do começo do século XX até os anos 30, cujo caso da Suprema Corte Lochner v New York é emblemático, que aprovou a liberdade de contrato independentemente das restrições de leis estaduais sobre o limite de horas trabalhadas. Tal tendência só fora revertida durante os anos 30 com o New Deal, e à duras penas com a resistência de um judiciário majoritariamente conservador. Sou frontalmente contra leis que dê (mais) margem ao capitalista para aprofundar a exploração sobre os trabalhadores, ainda que o consentimento dos empregados que muitas vezes aceitam tais condições em vista de sua inferioridade de condições. Afinal, é melhor aceitar um trabalho que te explora do que ficar à mingua, é óbvio. Ou seja, o argumento de liberdades individuais não basta em minha opinião, pois compete aos agentes estatais criar legislações que freiem o capital, ainda que às custas do escopo do indivíduo. Sei bem que Jean Willys não pretende defender o capital aqui, só me apoio nesse ponto para enfatizar que o argumento da liberdade individual não basta em minha opinião, e ele deve ser contraposto ao da igualdade de condições.
O projeto de lei:

            Agora o que importa, o projeto de lei. A iniciativa é louvável pois regulamenta de fato a prostituição, que tendo sida relegada ao limbo da informalidade (não é ilegal, mas não é regulamentada) deixa os empregados vulneráveis à toda sorte de exploração e ausência de direitos que todos os outros trabalhadores tem. O projeto explicita que é juridicamente exequível exigir o pagamento pelo serviço e que está vedada a exploração sexual dos profissionais, que consistiria em coação ou deter mais do que 50% da receita d@s prostitu@s.  A atividade poderia ser exercida de forma autônoma ou por meio de cooperativas, e também em casas de prostituição.
"Parágrafo único. A casa de prostituição é permitida desde que nela não se exerce qualquer tipo de exploração sexual"
Aí está. Esse artigo, confere ao capitalista reter ao menos 50% da receita dos profissionais em casas de prostituição.  Mas aí Jean Willys arremata:

"
Se o trabalho sexual é uma forma de mercantilização do corpo, qualquer trabalho que envolva o corpo também é! O que é que diferencia o pênis, a vagina ou o ânus das partes do corpo que usamos em outros trabalhos considerados "braçais", a não ser os tabus que interditam a sexualidade e querem escondê-la sob uma redoma sombria e custodiada por demônios?"

            O argumento de que nós, reles trabalhadores, estamos sujeitos às mesmas condições de exploração, é pertinente para desestigmatizar a atividade e lembrar-nos que também nos prostituímos um pouco (como o coletivo da CUT dissera que as mulheres não prostitutas também se prostituem, eu iria mais longe e alargaria isso para tod@s nós) . Mas este argumento combate o preconceito apenas para naturalizar a reboque a opressão capitalista e oferecê-las às prostitutas, ainda que com a intenção de protegê-las dentro de alguma forma e empoderá-las como agentes ativos de suas próprias vidas. Mas a que custo? Para que fazer com que as duplamente exploradas sejam tiradas das sombras da lei para serem jogadas nas amarras da opressão institucionalizada do capital? É uma aposta de concessão, atinge-se um meio caminho do que é possível, mas ainda sim com um custo alto.  Claro que em todas as relações trabalhistas, com professores, policiais, e operários,  o capitalista se refestela com 50% da produção do trabalhador ou muito mais, mas já que será regulamentada a profissão da prostituição dentro de novos marcos, por que não ir mais longe e só permitir relações mais igualitárias das que já tanto sofrem, além de somente conceder os (importantíssimos) direitos trabalistas? Devemos ir mais longe e enxergar além da opressão que as mulheres sofrem fora do escopo da legalidade, mas tensionar com a própria legalidade opressora. Assim como desejo que os trabalhadores rurais trabalhem em cooperativas e detenham a parte integral de seu suor, ao invés de simplesmente não serem escravizados, não poderia aquiescer com uma legislação que dá os anéis (alheios) para poupar os dedos, sendo que tais corpos sofrem na carne o que o capital procura abstrair.
            Em suma,a iniciativa de romper com a hipocrisia e moralismo (não das mulheres da CUT mas da aliança da bancada ruralista e da evangélica em certas votações) contra a prostituição, e integrá-las dentro do mercado de trabalho é necessária e positiva, apenas não acho que vá longe o suficiente. As críticas pessoais feitas ao deputado, e as acusações de estar mancomunado com os abutres da exploração sexual à espera da copa do mundo, é injusta e descabida. Mas acho que devemos ter coragem de apagar aquele parágrafo único do Artigo 3°, que concede ao capitalista um controle indefensável sobre o corpo feminino. E para ambas as iniciativas de lei, a com e a hipotética sem o famigerado parágrafo, é preciso uma vontade política enorme que o governo petista não teve, contido pela própria covardia e pelas constrições políticas. Enquanto estivermos reféns das bancadas da bíblia e da soja, e entorpecidos pelo monopólio da mídia conservadora, não haverá regulamentação da prostituição nem criminalização da homofobia. Não ao moralismo, mas sim à igualdade!

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